Talvez
para o espectador carioca, o nome de Newton Moreno tenha vindo à
tona com mais força a partir da bela montagem de “Agreste”,
apresentada no Teatro Poeira. Marieta Severo e Andréa Beltrão,
donas do Poeira, encomendaram a Newton um novo texto e assim nasceu “As
centenárias”, sucesso de público e crítica
desde os últimos meses de 2007, que lhe rendeu o Prêmio Shell.
Mais recentemente, apresentou no Rio o resultado de sua parceria com a
diretora Cibele Forjaz: “VemVai – O caminho dos mortos”,
espetáculo vencedor do Prêmio Shell de São Paulo nas
categorias direção (Cibele) e atriz (Lucia Romano).
No
caso de “VemVai”, Newton e Cibele propõem uma relativização
do entendimento de morte a partir da mitologia indígena. O ponto
de partida foi uma pesquisa da Cia. Livre sobre mitos de morte e renascimento
na cultura brasileira conduzida pelo antropólogo Pedro Cesarina,
que sugeriu como foco os povos ameríndios. Cibele decidiu convidar
Newton Moreno para trabalhar na dramaturgia do espetáculo, construída
em conjunto com o processo do grupo.
Ambos
tinham iniciado uma parceria artística desde que Cibele dirigiu
uma leitura de "A refeição", texto de Newton -
levado posteriormente ao palco por Denise Weinberg - composto por três
histórias, uma delas centradas no contato entre um pajé
e um antropólogo. "Sempre tivemos admiração
mútua. Na noite da última apresentação que
fizemos de `Arena conta Danton', no Teatro de Arena, estávamos
emocionados porque Myriam Muniz, que nos proporcionou um belo depoimento,
tinha acabado de morrer. Havia muita gente do Arena na platéia,
como José Renato e Fauzi Arap, e, no momento da decapitação
de Danton, Eucir de Souza perguntou: `Newton, você está aí?'.
Da platéia, ele respondeu: `Sim'. Eucir voltou a perguntar: `Você
escreve uma peça para nós?'. E Newton disse: `Escrevo'",
relembra Cibele.
Em
"VemVai - O caminho dos mortos", Cibele, Newton e os atores
mergulharam na cultura dos ameríndios - em especial, os Araweté,
Parakanã, Wayãpi, Marubo, Pakaa-Nova, Krahó, Jívaro,
Kalapalo e Mundurucu. "Nossa cultura é fundamentada na construção
do eu, algo distante na mitologia indígena, que crê na multiplicidade
do indivíduo. O conceito de transitoriedade é muito presente,
no que diz respeito à crença da morte como mudança.
Há uma valorização do percurso, da transformação,
ao passo que nós convivemos com a idéia de início,
meio e fim porque julgamos estar no centro do mundo", afirma Cibele,
evidenciando um distanciamento, na mitologia indígena, da perspectiva
da morte como fim.
Talvez
caiba perguntar em que medida existe, segundo esta concepção,
uma defesa em relação ao (eventual) caráter absoluto
da morte. "Num certo sentido, os contos indígenas não
aceitam a morte como fim. Não `pensam' de forma estanque, mas,
ao contrário, em reticências. A idéia de fim é,
então, problematizada. Mas, seja como for, a provocação
foi feita", assinala Newton Moreno. Formado como ator pela Unicamp,
onde trabalhou com diretores como Maria Thais, Marcio Aurelio (que, posteriormente,
dirigiria a elogiada montagem de "Agreste") e João das
Neves, Newton Moreno não demorou a migrar para a dramaturgia. "Comecei
a escrever ainda na Unicamp", diz Newton, complementando com a informação
de que uma montagem de seu primeiro texto, "Deus sabia de tudo...",
acaba de voltar a cartaz em São Paulo.
"VemVai"
não é a primeira experiência de Newton na construção
de uma dramaturgia colaborativa, gerada em conjunto com os trabalhos do
diretor e dos atores. "Sempre estive próximo da sala de ensaio",
afirma Newton, também acostumado a trabalhar com as companhias
Balagan (dirigida por Maria Thaís) e Os Fofos Encenam, com quem
deverá realizar um próximo projeto (acumulando as funções
de autor e diretor) calcado nas memórias de famílias pernambucanas.
Em seus textos, Newton vem elevando a morte ao "status" de importante
personagem, a julgar por obras como "As centenárias",
"Assombrações do Recife velho", que sonha em trazer
para o Rio, e "Agreste". Não há, em "VemVai",
nenhuma intenção em colocar o espectador diante de uma visão
cristalizada a respeito da morte. "Não podemos falar por alguém.
Procuramos mostrar, isto sim, como lemos e recriamos - nos apropriamos,
enfim - de determinadas histórias", sublinha Cibele Forjaz.
Na
montagem, a platéia percorre os espaços através de
um ator-guia, perspectiva materializada na concepção cenográfica.
O espectador atravessa ambientes, presenciando histórias e narrativas
míticas que reinterpretam os vários estágios do caminho
dos mortos (intitulados "A morte ritual", "O canibalismo
guerreiro", "O canibalismo funerário", "Vem-Vai
- O caminho-morte" e "O canibalismo celeste") dos povos
ameríndios. "O público atravessa o caminho dos mortos
- portanto, é o `personagem' principal. Mas a relação
que o espetáculo propõe à platéia é
direta, simbólica, e não física", observa Cibele,
que criou o espaço como uma instalação, exercitando,
dessa forma, uma conexão entre o teatro e outras manifestações
artísticas.
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