As palavras dos que sabem

Fragmentos de depoimentos de atores que dialogaram com os alunos nas aulas inaugurais da CAL

por Daniel Schenker


Tradição inquebrantável do programa do Curso Profissionalizante de Formação de Atores da CAL - Casa das Artes de Laranjeiras, a aula inaugural visa a colocar os alunos diante de depoimentos de renomados atores brasileiros acerca de suas experiências profissionais. Citar todos os artistas que vêm marcando o início de cada semestre desde que a escola foi fundada, na primeira metade da década de 80, pode soar algo extenso, mas não se deve deixar de destacar as presenças de Fernanda Montenegro, Paulo Autran, Ítalo Rossi, Sergio Britto, Marília Pêra, Vanda Lacerda, Rubens Corrêa, Beatriz Segall, Laura Cardosa, Marco Nanini, Ney Latorraca, Diogo Vilela, Regina Casé, Renata Sorrah, Nicete Bruno e Paulo Goulart, Paulo José, Milton Gonçalves e Aderbal Freire-Filho. Nestes encontros, os atores falam sobre suas experiências profissionais e visões a respeito do trabalho do ator e respondem a perguntas dos alunos, relativas, freqüentemente, à importância do talento e da vocação para o exercício diário do ofício e à utilização da emoção e da técnica em cena.

Profissional marcada por diversos trabalhos de impacto no teatro – só para citar alguns, “O Mambembe”, “O Interrogatório”, “É...”, “As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant” e “Dona Doida – um Interlúdio” –, Fernanda Montenegro, na aula inaugural de 1983, externou sua visão sobre o ator. “Quero deixar claro que não acho que o nosso ofício seja mais qualificado do que outros. Porém é notório, principalmente no Brasil, que nós não praticamos um ofício tipo prioritário: padeiro, médico, serralheiro, advogado, mesmo músico, mesmo pintor, mesmo escritor (artes tidas como nobres). Esses ofícios todos têm uma herança científica da sua existência e transferência. Suas conquistas são palpáveis. Deixam sempre algo de concreto. Nosso ofício, falo de teatro, não deixa provas. A posteridade não nos conhecerá. Quando um ator pára o ato teatral, nada fica. A não ser a memória de quem o viu. E mesmo essa memória tem vida curta”, afirma a atriz, levantando pontos importantes: o fato do trabalho do ator, bem como o próprio teatro, ser efêmero, ao contrário do que ocorre em outras manifestações artísticas, como o cinema; e da natureza da arte, ainda que Fernanda Montenegro destaque especialmente o trabalho do ator como algo desvinculado de um sentido de utilidade, ao contrário das outras profissões citadas.

Amigo e parceiro de trabalho constante de Fernanda Montenegro, Sergio Britto atravessou as fases mais importantes do teatro brasileiro, especialmente na segunda metade do século XX. Trabalhou como ator no Teatro dos Doze, de Paschoal Carlos Magno, no Teatro dos Sete, sob a direção de Gianni Ratto, dirigiu montagens destacadas, como “Os Filhos de Kennedy”, trabalhou com encenadores revolucionários, como Victor Garcia, esteve por trás, ao lado de empreendedores como Paulo Mamede e Mimina Roveda, da excelente programação do Teatro dos Quatro, assumiu a gestão do Teatro Delfim, onde valorizou a dramaturgia nacional e a cultura brasileira, e, nos últimos anos, vêm participando de montagens de clássicos do século XX, como “Longa Jornada de um Dia Noite Adentro” (Eugene O’Neill) e “As Pequenas Raposas” (Lillian Hellman), e contemporâneos, a exemplo de “Outono e Inverno” (Lars Norén). “Longa Jornada...”, ao que parece, foi especialmente importante para marcar a sua inquietude como artista. “O meu personagem na peça era um ator que passou a vida inteira fazendo o mesmo personagem em ‘O Conde de Monte Cristo’. Não pode haver azar maior para um ator. O dinheiro se tornou muito importante para ele, que vivia numa família que não tem mais solução. E por que eles que parecem se odiar tanto permanecem juntos? Porque o amor independe. É uma peça difícil, talvez a maior do século XX”, atesta Sergio, que relembra dos minutos anteriores à entrada em cena. “Cleyde (Yáconis) tremia antes de entrar em cena. Eu também sinto cada vez mais medo do teatro. O medo vem com a responsabilidade. Quando comecei a fazer teatro levava na brincadeira”, evoca Sergio, que trocou a medicina pela carreira de ator. Influenciado pelas pesquisas que realizou sobre Jung para o espetáculo “Jung e Eu”, dirigido por Domingos de Oliveira, Sergio Britto falou sobre a simbiose entre ator e personagem. “Para fazer um personagem – Iago, por exemplo – tenho que descobri-lo em mim. O que existe de monstro em mim. Jung mostra que todo ser humano tem tudo dentro de si. Ele desenvolve ou não”, destaca Sergio, defendendo a idéia de que o personagem não é um outro ao qual o ator vai de encontro, mas sim uma parte de si mesmo.

Esta também parece ser a visão de Rubens Corrêa, que abraçou a profissão artística após ter ficado impressionado com a montagem de “Hamlet”, no Teatro dos Doze. “Aqueles instantes, todas as noites, em que represento um papel, são sempre os melhores momentos do meu dia. Isso quer dizer que levo para o palco meus sentimentos, minhas idéias, minhas alegrias, meus abismos, meu horror e minha luz. Diariamente filtro essas emoções através das necessidades de cada personagem e recebo de volta para mim uma nova compreensão de meus problemas – e acrescento um novo enriquecimento conseguido ‘a quente’, quer dizer, arrancado de dentro de mim. Com o correr dos anos fui aprendendo a me observar como artista e ser humano e tentando aproveitar em meus desenhos interpretativos a linguagem interior de minha vivência pessoal para conseguir assim essa difícil união entre arte e vida, que sempre foi a minha grande aspiração”, diz Rubens, conceituando o material pessoal e intransferível de cada ator como um “cálice de cristal interior”. Já o cavalo do ator é seu próprio instrumental, na medida em que, diferentemente do que ocorre em outras manifestações artísticas, a matéria-prima do ator não está fora de si, mas reside justamente no emprego de seu corpo, de sua voz. Rubens Corrêa – fundador, ao lado de Ivan de Albuquerque, do Teatro do Rio (localizado no atual Teatro Cacilda Becker) que depois seria transferido para o Teatro Ipanema, marco da cena carioca durante a década de 70, pólo de espetáculos aclamados como “Hoje é dia de Rock”, de José Vicente, e responsável por trabalhos marcantes, como “Artaud” – destacaria ainda o fogo do ator, sua curiosidade natural em relação ao mundo, e seu menino, ou seja, o esforço que deve ser feito no sentido de se desprender de amarras normalmente acumuladas com o passar dos anos. Quem assistiu ao seu último trabalho, “O Futuro Dura Muito Tempo”, de Louis Althusser, ao lado de Vanda Lacerda, pôde constatar que ele conseguiu manter algo da qualidade lúdica da infância.

Atriz de personalidade combativa e questionadora, Beatriz Segall defende algumas “plataformas” que considera pouco valorizadas nos dias de hoje, como o respeito ao próximo no trato cotidiano e a responsabilidade da televisão, dado o poder que adquiriu no Brasil ao longo da segunda metade do século XX. “A TV não foi feita para educar, mas também não foi feita para deseducar”, declara a atriz que diferencia censura, algo que vivenciou pessoalmente durante os anos de ditadura militar, e controle de qualidade. Ao abordar a importância da televisão, Beatriz aproveita para citar como exemplo a novela “Vale Tudo”, de Gilberto Braga, na qual interpretou, com imenso sucesso, a vilã Odete Roitman. “‘Vale Tudo’ foi uma novela historicamente importante num país como o Brasil, em que todo mundo sabia da corrupção, mas não dos seus meandros. A novela mostrou como se pratica corrupção. Facilitou o impeachment do Collor”, opina Beatriz, que tem uma trajetória singular como atriz: após começar no teatro com Mme. Henriette Morineau, abandonou a carreira por 14 anos. “Fiz tudo o que as feministas disseram para não fazer. Fui dona de casa, mãe de família, eduquei os filhos, aprendi a cozinhar. Durante esses 14 anos, nem pensei em teatro. No entanto, quando voltei, tinha 14 anos a mais”, conta a atriz, que retornou aos palcos com o Grupo Oficina, dirigido por José Celso Martinez Corrêa, em 1964. Participou de montagens de peso dentro da companhia, como “Andorra” e “Os Pequenos Burgueses” e, no decorrer dos anos, já fora do Oficina, fez “Frank V”, “O Interrogatório”, “A Longa Noite de Cristal”, “À Margem da Vida”, um dos espetáculos mais importantes de sua carreira, assinado por Flavio Rangel, assim como “Emily”, dirigido por Miguel Falabella, e mais “Lillian”, “O Manifesto”, “O Tempo e os Conways” e “No Fundo do Lago Escuro”, estas duas últimas junto ao Grupo Tapa.

Laura Cardoso teve formação diversa. Começou no rádio – mais exatamente, na Rádio Kosmo, numa fase pré-televisão. “Venho de um bairro bem popular, operário, de São Paulo – o Bexiga, também conhecido como Bela Vista. Ouvia novela na Rádio São Paulo, até que em 1946 consegui entrar na Rádio Kosmo, que ficava na Consolação com São Luiz. O rádio é uma grande escola porque você precisa saber ler, se expressar e se comunicar com a pessoa que está do outro lado mas não te vê”, enumera Laura, que ingressou no teatro pelas mãos de Antunes Filho na montagem de “Plantão 21”, de Sidney Kingsley, diretor com quem voltou a trabalhar mais recentemente na excelente montagem de “Vereda da Salvação”, de Jorge Andrade, na qual foi levada a buscar, em determinado momento, um timbre de voz agudo para a sofrida Dolor, em contraste com a sua gravidade natural. O contato com manifestações como o circo e o próprio universo popular da família – “minha família vendia frutas e eu pegava um caixote e representava para minha avó”, relembra – foi aproveitado pela atriz em diversos momentos de sua carreira, a exemplo de “Vem Buscar-me que ainda sou Teu”, encenação de Gabriel Vilella para o texto de Carlos Alberto Soffredini. As lembranças pessoais são sempre aproveitadas por Laura Cardoso na construção de suas personagens. “Quando menina, os enterros eram dramáticos, terríveis. As famílias vinham para a porta gritando pelo caixão que era levado no carro funerário. É uma memória que posso sempre utilizar”, aponta Laura, sinalizando o caminho da verdade interpretativa. “Fazer uma personagem é construir uma pessoa que, em primeiro lugar, eu mesma acredite para que, então, o outro também possa acreditar. Para interpretar uma prostituta não basta se caracterizar com vestido e pintar a cara. O ator deve encontrar a prostituta dentro de si, sem estereotipar. Até porque a puta pode ser freira”, destaca Laura, que confessa que gostaria de fazer alguma tragédia grega e “O Doce Pássaro da Juventude”, que viu com Glauce Rocha.

Arlete Salles também começou sua vida profissional no rádio, ainda no período em que morava no Recife. Fez teste para radioatriz, aos 14 anos. Não foi aprovada, num primeiro momento, mas não desistiu. Sua voz já determinou um caminho ou, pelo menos, aquilo para o qual não seria escalada. “Por causa da minha voz grave não fiz as mocinhas, as amorosas”, explica Arlete, que assistiu também à chegada da televisão. “Quando estreei no teatro, as TVs associadas estavam começando no Recife. O grande sucesso era o teatro feito ao vivo na TV, no qual apresentavam uma peça por semana sem os recursos técnicos de hoje. Queriam levar essa experiência para o Recife e acabei fazendo o Grande Teatro por lá”, conta. Arlete casou e pensou que não retornaria à carreira. “Mas não era o que estava escrito”, afirma a atriz. Graça Mello foi até o Recife e acabou dirigindo Arlete numa montagem de “A cegonha se diverte”, que lhe rendeu o prêmio de revelação feminina. A atriz veio para o Rio de Janeiro. “Cheguei aqui e o Grande Teatro tinha acabado. O boom do momento eram os humorísticos, para os quais passei diretamente saída dos textos clássicos”, relembra Arlete, que desenvolveu carreira de sucesso.

Mas o fato de ter construído uma trajetória profissional bem-sucedida não a livrou de crises no percurso. “Sempre levei a sério a profissão, mas, de alguma forma, deixava que a vida pessoal me dispersasse. A meia idade veio e achei que não tinha chegado onde queria. Entrei numa crise existencial sem precedentes”, assume. Até que o convite de Miguel Falabella para interpretar uma das personagens de “A Partilha” a consagrou definitivamente. A comédia doce-amarga escrita por Falabella começou em pequeno porte, no Teatro Cândido Mendes, e logo foi transferida para espaços maiores, permanecendo anos em cartaz. O vigor foi mantido em “A Vida Passa”, continuação de “A Partilha”, interpretado pelo mesmo elenco original. A parceria com Falabella foi perpetuada na televisão – nas novelas “Salsa e Merengue” e “A Lua me Disse” – e no teatro – valendo lembrar de seu trabalho em “Veneza”. “Para compor essa prostituta fui à Vila Mimosa. Conheci várias mulheres. Foi uma experiência dura, mas que me emocionou muito. No entanto, o trabalho não foi fácil. Durante os ensaios, Falabella me dizia: ‘eu sei que você vai conseguir’. Quando o diretor diz isso você sabe que não está conseguindo. Procurei deixar toda a exterioridade de fora. Até que aconteceu”, conta a atriz, que também marca presença no inédito “Polaróides Urbanas”, primeiro filme dirigido por Falabella. Ao olhar para trás, Arlete faz uma avaliação bastante sóbria da profissão. “O teatro é um pai severo e rigoroso como nenhuma outra profissão, mas também dá gratificações e alegrias como nenhuma outra profissão. Fama e dinheiro são coisas muito boas. O teatro, porém, não pode ser encarado apenas dessa forma. Quem segue este caminho não quer verdadeiramente o ofício, mas tão-somente trabalhar na Globo, o que é perigoso porque a tendência é só conseguir participar de um ou dois trabalhos”, destaca.

A continuidade de parcerias sólidas também foi uma marca na carreira de Renata Sorrah, desde o início diretamente vinculada ao diretor Amir Haddad. “Vim de uma família de classe média. Meu pai era judeu alemão; minha mãe, brasileira. Senti necessidade de romper um pouco com a família, me libertar de uma estrutura burguesa. Fui morar em Copacabana com Amir. Eu era muito tímida e ele me pediu para dar um passo. Eu quis morrer. É uma linha muito difícil de ser transposta. Comecei no Tuca - Teatro Universitário Carioca -, com ele. Antes eu cursava psicologia e não sabia que queria ser atriz. Não pensava nisto”, explica Renata, que já começou a carreira interpretando personagens fortes, como Angústias em “A Casa de Bernarda Alba”, de Federico Garcia Lorca. “Ela só tinha uma fala. Ao final, Amir disse para o menino que estava testando: ‘você tinha uma atriz em cena e não percebeu’. Amir disse que eu era uma atriz. Neste dia, acordei de um jeito e fui dormir de outro completamente diferente. Nunca mais pensei em fazer outra coisa”, rememora Renata, que, desde o início de sua carreira, priorizou uma dramaturgia de qualidade. Participou de montagens de "O Trágico Acidente que Destronou Tereza" (de José Wilker), "Os Convalescentes" (José Vicente), “Noite de Reis” (Shakespeare) e “Encontrarse” (Pirandello). Talvez entre as montagens mais importantes estejam as de “A Gaivota”, a cargo de Jorge Lavelle, “Grande e Pequeno”, de Celso Nunes, além das célebres encenações do Teatro dos Quatro, como "As Lágrimas Amargas de Petra von Kant", "Afinal, uma Mulher de Negócios" e "Os Veranistas". A atriz, que mantém a amizade com Juliana Carneiro da Cunha, radicada há muitos anos no Théatre du Soleil, de Ariane Mnouchkine, assume uma postura inquieta e não se deixa levar por modismos. “Quando eu vejo a cara de um certo público, penso: ‘eles só querem ver determinado tipo de peça’. É um toma lá, dá cá, que está difícil. Às vezes, o ator fala: ‘ah, aquele público chato de sábado’. Eu sei que é chato ver a cara do público de teatro de shopping. Então, procure outro lugar. Não podemos ser engolidos pela mesmice, pelo teatro que não quer dizer nada. As pessoas mais sensíveis vão procurar o teatro e ele as acolhe”, declara.

Renata Sorrah foi uma influência determinante no ingresso da sobrinha, Deborah Evelyn, na profissão de atriz. “Eu morava em São Paulo e ela, no Rio, mas sempre fomos muito próximas. Lembro que assisti a ‘Vagas para Moças de Fino Trato’ umas sete vezes. Quando fui fazer prova para a Escola de Arte Dramática, ela me dirigiu numa cena de ‘A Gaivota’, um texto que já tinha interpretado no teatro”, diz Deborah Evelyn, que se formou pela EAD e cursou, paralelamente, a faculdade de Ciências Sociais. “Fui muito feliz na escola. É o momento que temos para arriscar. Não por acaso, com 17 anos, fiz uma cena de ‘Morangos Silvestres’, do Ingmar Bergman”, relembra Deborah Evelyn, que, logo no primeiro ano de EAD, foi convidada por Walter Avancini para fazer um trabalho na televisão. “Ele foi muito generoso comigo porque me ensinou o passo a passo. Quando leio a sinopse de um personagem na televisão, procuro entender a espinha dorsal dele. Se você tiver isso construído, qualquer coisa que fizer terá uma certa coerência. Afinal, personagem de novela é como a vida. Você não sabe o que vai acontecer”, resume. Ao longo dos anos, a atriz participou de montagens como “Um Piano à Luz da Lua”, nostálgico texto de Paulo César Coutinho, “As Três Irmãs”, na versão de Bia Lessa, e, bem mais recentemente, “Baque”, de Neil LaBute, que lhe rendeu o Prêmio Shell de melhor atriz. “Assisti a este espetáculo e decidi produzi-lo no Brasil porque me parecia que falava de coisas essenciais nos dias de hoje”, afirma Deborah, que foi dirigida por Monique Gardenberg e contracenou com o irmão, Carlos Evelyn. Com muitos trabalhos no currículo, a atriz destaca o perigo de se deixar levar pela rotina. “Não podemos perder o tesão do iniciante, do amador. Continuamos brincando de faz de conta”, destaca.

Ator minucioso, detalhista, a julgar não só por sua recente composição de Cauby Peixoto e de Nelson Gonçalves, respectivamente, nos musicais “Cauby!Cauby!” e “Metralha”, Diogo Vilela aprendeu a construção técnica de um personagem na prática, ao lado de Mme. Morineau, numa montagem de “Ensina-me a Viver”. “Eu tinha 20 anos na época e havia uma cena difícil para fazer. Nós estávamos fumando na casa da personagem dela, por quem o meu era apaixonado, e ela me dizia: ‘me conta da tua vida’. Aí vinha um bife de duas páginas. Eu tinha que começar a falar: ‘ah, a minha vida é ótima, eu moro com a minha mãe, eu costumo viajar com os meus amigos...’ e eu precisava, aos poucos, criar uma idéia de que não era feliz. Tinha que trabalhar com sentimentos contraditórios. Eu tinha que dizer a ela que a minha vida era ótima até chegar a um ponto de não falar mais nada e dar uma pausa”. Diogo Vilela, que já tinha participado de um espetáculo importante, “O Último Carro”, de João das Neves, voltaria a trabalhar com Morineau em “Testemunha de Acusação”, de Agatha Christie. Ao longo dos anos fez muitos trabalhos de peso no teatro, como “Solidão, a Comédia”, reunião de cinco histórias de Vicente Pereira em montagem dirigida por Marcos Alvisi, “Diário de um Louco”, também sob o comando de Alvisi, e “Tio Vanya”, encenado por Aderbal Freire-Filho no Parque Lage, além de sensibilizar público e crítica com a direção de “Jornada de um Poema”, de Margaret Edson, espetáculo potencializado pela interpretação de Gloria Menezes.

Já Giulia Gam, além da carreira consistente, conta com a particularidade de ter trabalhado com a chamada santíssima trindade formada por Antunes Filho, Gerald Thomas e José Celso Martinez Corrêa. Foi dirigida por Antunes no Grupo Macunaíma em encenações como “Romeu e Julieta” e “Macunaíma” (remontagem), integrou a Cia. de Ópera Seca de Thomas e interpretou Cacilda Becker, juntamente a Leona Cavalli, em “Cacilda”, no Oficina. “Marcelo Tas me descreveu Antunes como um senhor corcunda que dava uma pilha de 20 livros aos atores e botava-os numa sala escura durante 20 horas por dia. Mas tive a sorte de pegá-lo no auge e de chegar lá sem vícios de interpretação. No Grupo Macunaíma, viajávamos para festivais internacionais e tínhamos contato com trabalhos de Pina Bausch, Tadeusz Kantor, Peter Brook e Giorgio Strehler. Vivíamos num colégio rígido, mas que dava uma base genial. Antunes achava que o ator deveria ter um estudo completo. De fato, quanto mais cultura adquirimos, mais liberdade alcançamos”, descreve Giulia Gam, que travou parceria com Bete Coelho, sua porta de entrada para a Cia. de Ópera Seca. “Bete tinha uma postura transgressora, desafiadora, agressiva. Quando juntou com Gerald foi uma química perfeita. Resolvemos fazer ‘Fim de Jogo’ e ela sugeriu que Gerald dirigisse. Tinha muito medo dele. Tudo o que não sofri com Antunes, sofri com Gerald”, conta Giulia, que, porém, complementou sua formação de atriz com um registro de atuação contrastante ao defendido por Antunes. “Antunes buscava o essencial. Contávamos ‘Macunaíma’ com jornal, com os corpos dos atores transformados em estátuas de talco, sem efeitos. Gerald, por sua vez, chegou ao Brasil com o filó e todos os efeitos de luz”, distingue Giulia Gam, que só viria a trabalhar com Zé Celso anos depois, valendo lembrar que o diretor passou muito tempo envolvido com a reconstrução do Teatro Oficina.

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