O teatro de referências de Gerald Thomas

Diretor está apresentando dois espetáculos – “Terra em trânsito” e “Rainha mentira”

por Daniel Schenker Wajnberg


As referências aparecem em peso nos dois novos espetáculos de Gerald Thomas – “Terra em trânsito”, já apresentado em São Paulo, e “Rainha mentira”, até então inédita. No primeiro, Fabiana Gugli (indicada ao Prêmio Shell de melhor atriz) interpreta uma artista que, enquanto aguarda no camarim a hora de entrar em cena, interage com um cisne(!) e cita diversas personalidades do cenário cultural e político. No segundo, a referência maior é a vida do próprio Gerald Thomas, que presta uma homenagem à mãe, falecida em agosto, acusada pela avó do diretor de ter assassinado o próprio irmão aos nove anos. As duas montagens estão sendo apresentadas no Teatro Oi Futuro.

“Minha avó culpou minha mãe durante toda a vida. Era uma prostituta de alta classe, viciada em morfina e heroína que nunca me transmitiu o menor afeto. Queria que o meu tio, que era homossexual, se relacionasse com um oficial nazista para escapar do campo de concentração”, conta Gerald, que transcreve algumas lembranças na montagem. “Numa determinada ocasião, meu pai estava cortando uma carne. Minha avó reclamou que ele estava cortando contra a fibra. Ele disse que tinha comprado aquela carne e iria fazer do seu jeito. Daí, ela tentou se jogar pela janela, mas meu pai e minha mãe conseguiram segurá-la. Para infelicidade de todos nós, ela sobreviveu”, afirma.

Gerald Thomas lança um olhar pessoal não só ao evocar a sua própria história como ao analisar o conturbado contexto contemporâneo. “Vivemos hoje o pior momento desde a Segunda Guerra Mundial. Viajo muito pela antiga União Soviética e percebo como tudo está caótico por lá. Moscou se tornou a cidade mais cara do mundo, superando Tóquio e Londres. A América Latina ainda não se entendeu. Nas oficinas que realizo em Buenos Aires noto como pessoas da Argentina, do Peru, da Bolívia, do Panamá, da Colômbia, do Uruguai, da Venezuela e do Chile se entreolham mas não se agrupam. Nos países da Europa, isto não acontece”, destaca.

A falta de integração não é o único fator grave que Gerald Thomas detecta. O diretor sublinha também a perda de consistência nestes primeiros anos de século XXI, evidente, segundo ele, no nível dos próprios atores. “Os atores mais velhos têm a pele mais grossa, no sentido de possuírem bagagem e informação. Eles viveram a história. Conhecem a revolução de Sierra Maestra, sabem sobre a Baía dos Porcos, lembram de quando Getulio Vargas se suicidou. Hoje em dia, por causa da internet, ninguém mais adquire cultura. As pessoas teclam o google e apresentam o resultado para o professor. Poucos têm noção de quem foi Salvador Allende ou informações sobre a Guerra das Malvinas. Nas minhas aulas, em Nova York, percebi que os alunos ignoravam Artaud e o Living Theatre. Na Argentina, Victor Garcia, gênio do teatro, não é conhecido. Vivemos a globalização, que pode ser resumida à seguinte ideologia: as pessoas querem ter tudo porque o mundo lá fora está ficando uma desgraça”, critica.

Ao longo de sua carreira, Gerald Thomas dirigiu atores como Julian Beck, fundador do Living Theatre ao lado de Judith Malina, Fernanda Montenegro (em “The flash and crash days”), Ítalo Rossi, Rubens Corrêa, Sergio Britto (todos em “Quatro vezes Beckett”), Marco Nanini (“Um circo de rins e fígado”), além das parcerias habituais com Bete Coelho, Fernanda Torres, Magali Biff e Luiz Damasceno na Companhia de Ópera Seca. O diretor também vem transportando a realidade para o palco através dos atores que escala, como aconteceu ao dirigir Fernanda Montenegro e Fernanda Torres, mãe e filha, Marília Gabriela, recriando em “Esperando Beckett” um estúdio de televisão, e, mais recentemente, Serginho Groissman. É uma forma de Gerald Thomas abolir a fronteira entre ator e personagem. “Nas minhas peças, as pessoas são chamadas pelos verdadeiros nomes. Acho o conceito de personagem algo completamente ultrapassado. Muitos ainda acreditam na ficção da personagem, mas só quem existe é a própria pessoa”, declara.

TERRA EM TRÂNSITO / RAINHA MENTIRA – Textos e direção de Gerald Thomas. Teatro Oi Futuro (R. Dois de Dezembro, 63 – tel: 3131-3060). Sex. a dom. às 19h30. Ingressos: R$ 10.

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