"
Rasga Coração"

por YSTATILLE GONDIM
Aluna da Turma Pré C – Noite – Vencedora do 2º Concurso de Crítica da Revista CAL Digital.

O que Rasga o Coração?

“Eu sou um revolucionário, entendeu? Só porque
uso terno e gravata e ando no ônibus 415
não posso ser revolucionário?”
"Rasga Coração", Oduvaldo Vianna Filho.


O cenário ainda cheira a guardado. Móveis antigos e papéis já em desuso são distribuídos pelo palco do Teatro Glória. Da coxia são entoados versos de sambas do fim do século XIX. Sob direção de Dudu Sandroni, o elenco afina corpos e instrumentos para encenar Rasga Coração, último roteiro do dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho. A peça, apesar de ter sido escrita nos anos 70, traz questões pertinentes ao universo contemporâneo. Sandroni consegue resgatar quarenta anos do cenário político do Brasil de maneira crítica e dinâmica, sem perder a riqueza histórica e a poesia. O espectador logo tem seu olhar capturado pelos conflitos ideológicos de gerações. Chega a dar saudade, ou vontade, do que não se viveu!

A narrativa escolhida por Vianninha para contar as diferentes formas de pensar o mundo surpreende olhares atentos à construção dramatúrgica. O autor encrava no enredo, de forma sestrosa, uma narrativa psicológica através de técnicas de play-wrighting, reconstruindo o período da década de 30. Todo o ar paradoxal do enredo mostra, nas palavras de Oduvaldo, que “o revolucionário nem sempre é novo absolutamente e o novo nem sempre é revolucionário". Afinal, o conservadorismo está presente em todo discurso inovador que não se permite abrir brechas para a discussão de novas idéias - e como há conservadores no mundo.  É isso que a montagem grava na alma da platéia.

O diretor Dudu Sandroni explora todos os recursos cênicos com acuidade, potencializando o conteúdo narrativo através do cenário, das personagens e dos diálogos. Zécarlos Machado encarna o personagem central do espetáculo, Manguary Pistolão, um funcionário público que quando jovem participava ativamente das frentes revolucionárias do partido comunista brasileiro. Seu perfil ainda guarda resquícios dos corações enternecidos pelas lutas políticas, mas, ao mesmo tempo, assume a postura conformada com a liderança da direita. A ação dramática do espetáculo se desenvolve de forma vagarosa até o filho, Luca, interpretado por Pedro Rocha, ser suspenso do colégio por ter cabelos grandes. O fato desperta a indignação no pai e resgata seu espírito jovem esquerdista.

O conflito de gerações, a do revolucionário dos anos 30 e a do hippie da década de 1970, é estabelecido em cena através de diálogos paradoxais e gírias próprias de cada época – Sandroni inclusive distribui uma espécie de folhetim da peça com um glossário para facilitar a compreensão do texto. Enquanto Manguary tem sua fala embebida de discurso político revolucionário, seu filho defende a liberdade de expressão, a paz e o amor de forma lacônica. As fragilidades e coerências das duas gerações são bem dissecadas em cada conversa, em cada palavra e em cada pausa dramática.
As passagens de época são costuradas por Lorde Bundinha, um típico malandro das tramas urbanas da década de 30, que flana na vida sem ideologia alguma.  Vestido de branco, sem faltar, é claro, o chapéu panamá, o moço simpático, interpretado por Xando Graça, se dedica à boemia com afinco e às conversas debochadas e recheadas de luxúria com o grande amigo da adolescência Manguary Pistolão. No espetáculo, sua principal função é arrancar risos certos da platéia e demarcar os flashbacks do enredo. Em contraposição ao perfil descomprometido de Lorde, está a senhora Nena, representada por Kelzy Ecard. Sua postura reflete o arquétipo da mãe super protetora, sempre disposta a calar, a qualquer custo, os conflitos domésticos. Sua expressão sofredora comove o espectador e, por horas, o faz até cúmplice de suas ações. Algo próprio do espírito materno que é muito bem expressado pela atriz.

A cenógrafa Lídia Kosovski explora cada fagulha do pequeno espaço do Teatro Glória com elementos que dialogam bem com a narrativa da peça. O espaço cênico, entulhado de armários, escrivaninhas, cadeiras e papeis desgastados pelo tempo, denota a atmosfera antiga do enredo. É como se fosse um mosaico de objetos pessoais e temporais. Não há uma arquitetura definida que remeta o espectador a determinado período histórico. Em contrapartida, as quinquilharias empoeiradas revelam a caducidade das ideologias de Manguary Pistolão, herói anônimo da esquerda, assim como a de Luca, o hippie despojado de qualquer discurso político. E também mostram um Brasil estagnado, rendido à retórica, somente. 

Mas o roteiro não se encerra no período histórico narrado em Rasga Coração. Vai além. Oduvaldo, ao escrever a montagem em meados de 70, lançou um olhar menos eloqüente e encantador ao jovem hippie de sua época quando comparado ao da geração de 30, de perfil intelectual e com uma retórica plausível. Hoje, com a distância histórica, percebemos a relevância e riqueza cultural e ideológica deixada por esses hippies imbuídos de cores, drogas e liberdades. Mas, quando se volta o olhar para o período atual, fica a pergunta: o que rasga o coração do jovem de hoje?

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