A trajetória de um homem de teatro

Aula Inaugural proferida em 28 de março de 2007, na CAL


A minha mãe morreu quando nasci e a parte da família dela era carioca, enquanto que a do meu pai, paulista. Então, eu fiquei muito entre Rio e São Paulo. Quando estava no Rio, aos sete anos, passei na frente na Confeitaria Colombo, ainda na Av. Nossa Senhora de Copacabana com R. Barão de Ipanema, peguei um caixote de maçãs e levei para casa. Aproveitei os retalhos da minha avó, que era costureira, e fiz bonecos de fantoche. Passei a me apresentar para as freguesas dela, enquanto  esperavam para experimentar as roupas. Ali nasceu o ator, o autor, o diretor, o figurinista e o cenógrafo.

Eu me descobri ator. A primeira peça que vi, aos 10 anos, foi “My Fair Lady”. Eu lembro de pouca coisa, mas a minha tia-avó, que havia me levado, disse que eu estava no balcão e numa determinada hora apontei para o palco falei para ela que era aquilo que queria fazer.

Com 11 ou 12 anos fundei um grupo de teatro no colégio e fiz umas duas peças infanto-juvenis com tradução da Tatiana Belinky. No primeiro ano do colegial, a professora de português ofereceu a possibilidade dos alunos fazerem teatro como trabalho final. Ninguém quis, além de mim.  Mas no segundo e no terceiro colegial já havia várias pessoas no grupo de teatro. Sentia que tudo partia de mim.

Aos 16 quis entrar para a Escola de Arte Dramática (EAD), mas encontrei um grupo de teatro perto da minha casa. Fiz a matrícula e comecei a fazer teatro com Yacov Hillel. Descobrimos uma sala desativada numa biblioteca infanto-juvenil. Formamos um grupo e aos 20 anos me tornei diretor dele. Trabalhei com as crianças da biblioteca. Esta experiência, como muitas na minha vida, decorreu de uma necessidade de colocar para fora, de conquistar e ocupar espaços.

Em 1973, Antunes Filho ia montar uma peça de Feydeau com Maria Della Costa. Eu estava no restaurante da classe e me disseram que o Antunes procurava tipos estranhos e que haveria testes no dia seguinte. Cheguei lá e me deparei com 60 pessoas. Na platéia, Antunes e Maria. Entrei no teatro com outro ator. Antunes me olhou e disse: “comprido, sobe lá e ri”. Subi, mas não me vinha nada. Até que o ator do lado, que queria passar no teste, começou a rir. Antunes gritou para mim: “ri. Ou ri, ou desce”. Eu gemia. O ator do meu lado gargalhava e eu com ódio dele. Até que fiz um movimento e me machuquei. O dente sangrou e comecei a chorar. Antunes achou que eu estava rindo e ganhei o papel.

No primeiro dia de ensaio ele disse que eu só entraria no terceiro ato. No elenco havia pessoas idosas, do Teatro de Revista, como A.C.Carvalho e Ruy Affonso. John Herbert também estava no elenco. E Edwin Luisi fazia sua segunda peça. Eu chegava no teatro às 15h e ficava escondido na mesa de luz assistindo ao ensaio de mesa. Fiquei, pelo menos, um mês escondido ali. Aprendi que não conseguimos o principal se não tivermos obstinação. Durante oito meses de temporada, eu me limitei a falar “É”.  O espetáculo era às 21h e eu chegava no teatro às 17h30 para ouvir as histórias dos atores. Alguns trabalharam com Leopoldo Fróes e Alda Garrido. Durante o primeiro e o segundo atos não ficava no camarim, mas na coxia tentando perceber o tempo de comédia deles.

Em 1978 fiz “Camas Redondas, Casais Quadrados”, dirigido pelo José Renato, com Marco Nanini. Em 1979, já tinha um filho. Fiquei desempregado cinco meses e meu pai me aconselhou a procurar emprego. Mas eu disse que não porque minha profissão era aquela e não queria transformá-la em bico. Passei por sérias dificuldades até que enlouqueci e comprei uma máquina e escrever portátil em três prestações para escrever uma peça. E escrevi “Trair e Coçar... É só Começar”. Mostrei para o José Renato, Antonio Fagundes, Celso Nunes, Paulo Goulart e eles acharam muito engraçada, mas que não cabia montar um texto que não quisesse dizer absolutamente nada naquele momento político do país, quando ainda estávamos sob a ditadura. Estavam montando textos contundentes do Guarnieri, do Paulo Pontes, do Vianninha e a peça ficou seis anos na gaveta.

Um dia, fui pedir emprego como ator na TV Cultura e vi uma pilha de textos na anti-sala da direção. Em casa, peguei o primeiro livro que me veio à cabeça – “Cidades Mortas”, do Monteiro Lobato, e adaptei para o formato de cinco episódios. E botei em cima da tal pilha. No mesmo dia, Geraldo Vietri foi à emissora entregar sua adaptação de “Floradas na Serra” e viu o meu texto. Pegou para ler enquanto esperava para ser recebido e ligou para a minha casa. Fez o convite para escrever com ele na Bandeirantes. Falava para eu ir trabalhar só à tarde, mas acabava chegando de manhã e saindo de madrugada. Meu casamento quase acabou.

Roberto Talma assumiu a TV Bandeirantes, me chamou e disse que estava trazendo um elenco estelar e alguns autores do Rio. Eu falei para ele que tinha algumas sinopses para mostrar, o que não era verdade. Ele me disse para mostrar no dia seguinte. Fui para casa, não dormi, produzi uma e levei dizendo que era a mais adequada que eu tinha.

Em 1984, conheci Jandira Martini. Chamei-a para reformar “Trair e Coçar...”. Ela sugeriu que pensássemos em algo que pudéssemos fazer juntos. Começou aí a nossa parceria. Eu deixei de ser aquele autor de comédias bobas que não querem dizer nada, mas que cumprem uma das funções do teatro que é a de fazer rir, e me tornei ator de comédias que abordam problemas da vida política do país, como “Sua Excelência, o Candidato”, “Porca Miséria” e “Operação Abafa”. Escrevi uma novela, “A História de Ana Raio e Zé Trovão”, e, em 1986, “Trair e Coçar...” foi montada. A peça não sai de cartaz há 21 anos.

Eu e Jandira Martini escrevemos comédias políticas. Em primeiro lugar, procuramos detectar sobre o que o cidadão quer falar. Então, decidimos o tema. Definimos os personagens e os dissecamos psicologicamente, sempre em função do tema. Partimos para a interelação entre eles e fazemos a escaleta da peça até o que seria o fim do primeiro ato. Para cumprir estas tarefas você precisa marcar um horário determinado todos os dias. É transpiração. Mesmo que não venha nada na cabeça, não faça outra coisa. A necessidade é a mãe da criatividade. Aí lemos os nossos primeiros atos um para o outro e bate. As palavras são diferentes, mas as cenas, idênticas. Juntamos o melhor do meu primeiro ato e o melhor do dela. A segunda parte fazemos juntos porque nesse estágio já somos profundos conhecedores do que estamos falando.

Bruno Barreto me entregou um roteiro e pediu minha opinião. Aconselhei-o a não me perguntar porque eu digo a verdade sempre. Em estréias as pessoas costumam falar o que não sentem. Acho um horror mentir para os nossos pares. Vivemos de uma profissão que é uma grande mentira – para o público. Mas nós precisamos convencer o público da nossa mentira tornando-a verdadeira. E nós, os bons profissionais, temos que ser absolutamente sinceros uns com os outros porque somos muito poucos e precisamos nos dar as mãos. Então, eu vou às estréias e dou os parabéns aos meus colegas porque, na pior das hipóteses, houve um talento gasto ali. Aí a pessoa pergunta se eu gostei e eu digo que sim de algumas coisas e não de outras. E vou embora. Mas disse a verdade. Da mesma forma, disse ao Bruno Barreto o que pensava. E ele concordou comigo.

Cinema me deixa muito nervoso. Em meu primeiro filme, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, André Klotzel pedia para que eu abaixasse as mãos, as sombrancelhas... Fico muito amarrado. Mas, ao mesmo tempo, é fascinante porque menos é sempre mais e não é gravado na ordem cronológica tradicional. Em “Depois Daquele Baile” foi prazeroso trabalhar com o Lima (Duarte), um dos atores que mais fez cinema no Brasil, e aprender com ele.

Aprendi muito mais com meus erros que com meus acertos – e muito com os erros dos outros. É importante ter poder de observação e discernimento para saber o que está certo e o que não está. O acerto só serve para alimentar a sua vaidade, o que é ótimo. Mas aprendemos mesmo com os erros.

A possibilidade do erro é receber a bola como o outro manda e devolvê-la como você recebeu e não como gostaria de ter recebido.

Cleyde Yáconis falou algo que eu achei muito idiota, mas que, ao pensar a respeito, concluí que é uma das coisas mais simples, óbvias e pertinentes que se poderia ter como definição de teatro: o teatro é ouvir e responder. É muito sério e difícil porque poucas pessoas respondem da forma como ouviram.

Eu tinha certeza de que iria vencer. Tenho fé em mim. Isto ninguém me tira. Peço que o aplauso e o elogio alimentem mais a minha responsabilidade do que a minha vaidade.

Eu só venci por causa da obstinação. Vencer é ter o seu lugar ao sol, conquistar o seu objetivo e não ser famoso. Para vencer nessa profissão é preciso três coisas: talento, relacionamento e sorte. A sorte só existe na medida em que você criar oportunidades. Para encontrar alguém você precisa estar em todas as esquinas do mundo. É quase impossível, mas você precisa ter obstinação. E se o ator não tem talento deve fugir dessa profissão.

Walmor Chagas é o maior ator do Brasil. Mas não tem vocação nenhuma. Há pessoas que têm mais vocação que talento. Dá na mesma porque você lustra o seu talento pelo cansaço.

Marília Pêra atingia 500 pessoas por sessão durante cinco anos com “Mademoiselle Chanel”. Você talvez atinja cinco pessoas durante cinco meses. Não importa. O mais importante é acreditar no seu projeto.

Quinze dias antes da estréia de “Intimidade Indecente”, pedi substituição. Sentia que não sabia fazer aquilo. Estava parecendo um velhinho de “A Praça é Nossa”. Ensaiávamos num lugar horrível, frio à beça. E a Irene (Ravache) estava fazendo um trabalho glorioso. Eu a via e me via. A autora (Leilah Assunção) pedia que, a cada quadro da peça, saíssemos e voltássemos mais velhos e a Irene, louca, perguntou porque tínhamos que sair, por que não fazer a transição em cena.

Para o ator, o mais indicado seria construir o personagem de dentro para fora. Para chorar posso buscar algo em minha memória emotiva (de dentro para fora) ou apertar o dedinho violentamente (de fora para dentro). Se for um mero efeito soará falso. Mas se eu estiver com uma intenção correta e me utilizar do dedinho não tem problema. Como a comédia não costuma ter verticalidade – os personagens sobrevivem das situações em que são colocados – a tendência é que o ator construa de fora para denro. Mas num drama ou numa tragédia não dá para ser assim.

Teatro não é terapia. Não devemos utilizá-lo para colocar nossos demônios para fora. Mas eles estão lá dentro e temos que fazer com que o personagem passe pelo nosso filtro. Por isto, uma interpretação não é igual à outra e todas as interpretações do mundo para o mesmo personagem são válidas. Como eu vou fazer um assassino se nunca matei ninguém? Mas ao matar uma barata o meu lado assassino está ali...

O teatro tem 2500 anos e sempre sobreviveu a todas as crises pelas quais passou.

Gosto mais de atuar no teatro. A TV me interessa como veículo de exposição, como possibilidade de trabalho. Mas no teatro você tem um projeto, ao passo que na TV você é um projétil.

Encontrei Dercy Gonçalves e me apresentei a ela, que disse que estava indo para o SBT fazer o programa mas que não havia quem a dirigisse. Eu disse que não havia porque ela não tinha me convidado. Dei meu telefone. Chegando em São Paulo, ela me ligou e disse que pegou referências minhas no SBT e queria uma reunião comigo. Eu me interessava em fazer esse trabalho por dois motivos: porque queria aprender a dirigir e porque podia não saber dirigir na TV mas sabia dirigir a Dercy. No primeiro dia de gravação reuni toda a equipe no estúdio, me apresentei e confessei que não sabia dirigir TV e que, portanto, sem a ajuda deles não sairia do lugar. Dirigi este programa por 11 meses.

Nunca tinha feito tanto sucesso na televisão (na novela “Páginas da Vida”). O problema é que você fica muito visado e passa de observador a observado. E isso é muito ruim porque a minha função é observar. A cabeça do ator tem que ser um computador eternamente ligado.

Lilia (Cabral) vinha para a cena com o texto decorado. Do modo como devemos decorá-lo. O ator só pode interpretar quando tiver total segurança do que estiver falando. Do contrário estará representando e não interpetando.

O que falta nesse país é política cultural. Só ganha patrocínio quem está na Globo. As pessoas que querem formar um grupo para pesquisa de linguagem não têm vez. E no Rio de Janeiro se você não está na Globo está na praia.

Temos um problema social no Brasil. Aí você põe um sociólogo na presidência. Pensa que ele vai dar jeito. Mas fica oito anos e não consegue. Aí você elege o homem que sentiu o social na própria pele. Ficou quatro anos e está cumprindo mais quatro. Não temos política cultural. O estado precisa fomentar a juventude. Eu não tenho mais serviço para mostrar. Não tenho que ser patrocinado – sou conhecido. Vocês é que devem ser. Em São Paulo há a Lei do Fomento, que é boa. Irene Ravache tem um projeto chamado Teatro Simples.

Não sou saudosista. Acho, inclusive, que subestimamos a cabeça do jovem, que está anos luz na nossa frente. Ele só não tem experiência, algo que ainda irá adquirir.

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