Trechos da aula inaugural com o ator

por Sérgio Britto

Formei-me em medicina em 2 de janeiro de 1948. Quatro dias depois estreei em ”Hamlet”, no Teatro do Estudante. Passado pouco tempo não era mais médico e sim ator. Tive sorte. Minha família aceitou a mudança.

Sabia pouco sobre Jung. Amigos começaram a me mandar livros. Lia e não entendia nada. Até que uma amiga me enviou o livro escrito por Nise da Silveira sobre ele. Passei a entender tudo.

Jung me fez voltar atrás. Comecei a me lembrar da minha vida. 

Jung diz que o ator busca seu material mais importante quando dorme, nos sonhos. Quando fiz ?Jung e Eu? passei a sonhar imediatamente: com a minha vida antiga, o Teatro dos Sete, o Teatro de Arena, minha família. Outra noite sonhei que estava ensaiando minha tia numa peça do Eduardo De Filippo.

O ator fica tão ligado na personagem que sonha com ela e descobre coisas. Isto também é Jung.

Para fazer personagens, muitas vezes tenho que descobrir em mim o que existe de monstruoso. Jung prova que todo o ser humano tem em si todas as possibilidades. Pode desenvolvê-las ou não.  Para Jung, a sombra é o que existe de ruim em nós. Todos nós temos qualidades e defeitos. A sombra é o que sabemos que temos, mas recusamos. O melhor é trabalhar com ela. Para o ator é uma maravilha. Tudo o que ele pode ser de ruim está lá para ajudá-lo.

Meus amores costumavam se queixar de que eu não os amava o bastante. É que minha libido era maior em relação ao teatro. As pessoas que amei ficaram em segundo plano. Quando estou representando uma peça e a coisa acontece inteiramente, tenho um orgasmo. Discreto mas absoluto.

Acho que é uma sorte, mas quem não sente isto deve desistir porque o teatroé o amante mais cobrador do mundo.

Passo todo o texto antes de começar a peça. Faço isto em todos os dias de apresentação. Consegui convencer algumas atrizes a dizer o texto comigo. Em “Assim é se lhe parece”, Yara Amaral e Cristina Pereira tinham uma grande cena comigo e, meia hora antes do início da sessão, passávamos as falas no palco. E olha que naquele tempo fazíamos duas sessões no sábado. Daqui a pouco, o teatro vai virar um evento de domingos.

O teatro foi se tornando cada vez mais perigoso para mim. Sinto medo. Uma das maiores atrizes do Brasil, Cleyde Yáconis, tremia de medo antes de começar ”Lágrimas Amargas de Petra von Kant”. Ficava fazendo carinho nela antes das sessões.

Numa tragédia grega, um ator famoso costumava virar para o coro e fazer caretas. Não acho graça. Na verdade, acho idiota e cafajeste.
 
O ator é um louco. Alguém duvida? Decorar um papel e representar para uma platéia uma personagem que não é você...O ator não tem que entrar numa personagem a ponto de ninguém reconhecê-lo. Precisa representá-la.

Representar é perigoso. Senão, não tem graça. A cada fala, é preciso estar à beira do precipício.
 
Se o ator é aquele que vai mexer com todos os sentimentos, sensações e atrações possíveis não podem trabalhar superficialmente. Não pode fazer o que a televisão indica: grandes atores fazendo caricaturas de homossexuais. É uma brincadeira meio sinistra. 

José Wilker interpretou um homossexual na montagem de “Os Filhos de Kennedy”, que dirigi. Era uma personagem que foi massacrada por dois marinheiros quando estava vestida de Carmen Miranda. A cena tinha que ser rigorosa e durava o tempo exato de uma música de Maria Callas.

Wilker tinha a capacidade de acreditar no que fazia. Foi o maior ator de uma época. Trabalhou com Rubens Corrêa, fez peças incríveis. Era um ator especial, desligado do realismo psicológico banal. Estourou na praça de maneira violenta. Na TV, fez uma dupla homossexual com Otavio Muller. Foi uma anedota, assim como a outra dupla formada por Diogo Vilela e Luiz Carlos Tourinho.

Estou tentando não usar máscara nenhuma e falar com vocês de verdade. Mas há uma tendência desagradável em cada um de nós em ser persona. Ocasionalmente, o homem tem grandes qualidades, mas acaba preferindo a persona a si mesmo. Além do ator, o médico é vítima de persona. Não é à toa que muitas pessoas começaram na medicina e passaram para o teatro.

Às vezes,   estou conversando com alguém e começo a impressionar. De repente, percebo que estou armando minha persona. Resolvo me divertir. Conquisto a pessoa, manejo. Até o momento em que olho bem e pergunto: você está acreditando em tudo o que eu estou dizendo? Estou representando há meia hora. É um jogo muito divertido. Mas consciente.

Nos últimos anos, fiz “A Longa Jornada de um Dia Noite Adentro”, talvez a maior peça do século XX. A personagem do pai de Eugene O’Neill era a de um ator que fez sucesso numa única peça, “O Conde de Monte Cristo”. Fez seis mil vezes esse papel. Uma tragédia. A vida passava e ele não saía do mesmo papel. O dinheiro passou a ser muito importante para ele. Foi ficando ambicioso, egoista, ranzinza. As relações familiares não eram nada boas, mas o amor independe disso.

Era natural que o teleteatro acontecesse naquele momento. Fiz umas 400 peças. A novela pertencia ao rádio. Mas começaram a achar que se gastava muito dinheiro com o teleteatro.

Em “Outono e Inverno”, a linguagem é complicadíssima porque há cruzamentos de palavras. Lars Norén coloca toda a violência que tem sua raiz em Strindberg. Os noruegueses, suecos e dinamarqueses são doentes. E assumem sua doença com clareza fora do comum. 

Um dia perguntei a Eduardo Tolentino: “como vou resolver em cena essa personagem que fala tão pouco?” Ele disse para eu inventar o que quisesse. E me fez um grande elogio: “você é o ator mais disponível que conheci na vida”. Essa disponibilidade decorre da leitura. Criei uma continuidade em cena. Minha personagem mexe na meia, toma porre, quase dorme. Fiquei tão livre que voei e, às vezes, esquecia de dizer o texto. Não é a peça mais importante como
trabalho, mas como processo e experiência de realização não há nada
parecido.

É preciso se habituar a ler teatro nos espaços vazios, nos ônibus e nos bondes.

Ainda em “Outono e Inverno”, o processo de improvisação de cada fala me levou a não intelectualizar. Porque ali é tudo muito simples.

Não fazia cinema há muito tempo. Participei agora de “O Maior Amor do Mundo” de Cacá Diegues, e foi outro aprendizado: interpretei sem gestos e sem franzir testa, nariz e boca. Limpei tudo. Dá vontade de voltar a fazer as peças de que participei ao longo da carreira sem os maneirismos.

Decio de Almeida Prado escreveu: “Sergio Britto é um ator jovem com uma certa força dramática. Pena que grite tanto” Gritava porque estava ficando surdo. E não percebia.

Não tenho uma montagem preferida. Posso citar “Tango”, “Fim de Jogo”, dirigida por Amir Haddad, “Quatro vezes Beckett”, “Quartett”, ambas assinadas por Gerald Thomas, “O Beijo no Asfalto”, que foi escrita para nós, atores do teatro dos Sete, e é considerada por Barbara Heliodora a melhor peça de Nelson Rodrigues.

No Brasil, o teatro é o irmão paupérrimo das artes. Não conta com nenhum auxílio verdadeiro ou sólido.

Cada vez mais, atravesso momentos de dúvida: ainda tem sentido fazer teatro? O teatro está muito ruim. O fato de haver três ou quatro peças boas não quer dizer nada. Barbara Heliodora, às vezes dura demais, dura de menos, apontou uns 30 espetáculos inqualificáveis este ano. Quase sempre ela tem razão.

Em São Paulo, o teatro é muito melhor do que no Rio. Lá, o governo se preocupa.  Tentar melhorar a qualidade de vida de um povo é fornecer teatro. Pintura, música, ópera, literatura, tudo é importante. Mas nada mais do que uma peça. Por mais que domine um texto, o trabalho do ator será diferente a cada dia. Eu não posso mudar as intenções para não render meus colegas, mas sempre busco fazer algo diferente.

Ultimamente, tenho feito trabalhos importantes. Será sorte ou tenho determinado? Não vou na primeira proposta. Mas vocês, alunos, que estão saindo da escola não fiquem esperando. Façam qualquer coisa e comecem a escolher depois de dois ou três anos.

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