MOZART - O Drama na Música

por Bruno Furlanetto

Mozart, gênio da música, sabe-se. Falta definir “gênio”. Todas as suas obras participam do gênio mozartiano, mas nem todas são geniais. O termo é aceitável quando uma obra tem uma identidade tão forte que não pode mais ser confundida com outra, quando ela se tornou única. Assim ninguém se preocupa a quem atribuir Le Nozze di Figaro, bem como só existe um único Don Giovanni.

A mesma atitude pode definir a prática de um gênero em seu conjunto, desde que ele se desenvolva em uma trajetória, a qual, ela mesma, se transforma num todo. A trajetória, que supõe numerosas criações, pode ter a marca do gênio.

É o caso de Mozart, onde o gênero ópera e a trajetória de sua prática, exprimem o gênio propriamente mozartiano. A ópera. em Mozart, é uma fronteira: há a ópera antes de Mozart e há a ópera depois Mozart. É ele que marca, de forma indelével, o termo “ópera” na sua forma anterior e que impõe uma forma nova, moderna. Goethe dizia, referindo-se aos esforços dos compositores em chegar à verdade das coisas, que todos estes esforços perderam o sentido depois do aparecimento de Mozart.

Não se pode dizer o mesmo para todos os gêneros musicais praticados por Mozart. Poder-se-ia imaginar, no gênero sinfônico, uma trajetória histórica, sem solução de continuidade, de Haydn a Beethoven e a Schubert, o que não diminui a beleza de sinfonias de Mozart, como algumas da juventude e as últimas. Da mesma forma podemos passar dos quartetos de corda de Haydn àqueles de Beethoven, mesmo levando em conta os dedicados à Haydn, com toda a sua gravidade. Neste gênero é Beethoven que marcará a separação. Em se falando de lieder podemos dizer que a história do gênero principia, na realidade, com Schubert. Os lieder de Mozart, alguns belíssimos, não podem pretender esta importância histórica. Assim, também, as sonatas para piano, que não oferecem a trajetória das maciças sonatas beethovenianas. Ainda as músicas de igreja, á exceção da jóia que é o Ave verum, tanta profundidade em tão poucas notas, e o inacabado Requiem.

Mas há dois gêneros nos quais o compositor Mozart se mostra ser o término e o principio: a música para solista concertante com a orquestra (especialmente o piano e orquestra) e a ópera. O concerto chamado Jeunehomme, o Concerto em ré menor, não podem pertencer a nenhum outro compositor a não ser Mozart, um gênero ao qual ele deu um nível superior, desconhecido até aquela data.

O segundo gênero é o da arte lírica, a ópera. Em sua longa trajetória evolutiva ela ocupa, praticamente toda a vida do compositor, desde seu primeiro desejo expresso em Londres, nos seus primeiros anos de infância, aos oito anos de idade, até a Flauta Mágica, ao término de sua vida. Portanto, encontrar concertos lado a lado de óperas, não tem nada de extraordinário. O concerto para piano, ou para qualquer outro instrumento (clarineta, por exemplo).bem como as sinfonias, desde que elas sejam concertante (para violino e viola ), se baseiam no principio do diálogo, entre solista e orquestra, diálogo que em Mozart vai se interiorizar ao extremo, muito além do que se poderia esperar de um gênero na época chamado de “galante”. Os concertos de Mozart supõe uma dramaturgia.

Solista e orquestra, voz e orquestra, ópera e concerto são primos, de famílias diferentes. O solista, e sua demonstração de virtuosidade,  que deve convencer e vencer a orquestra, é uma imagem simbólica do indivíduo face à sociedade, sua presença tem o mesmo aspecto que um personagem de ópera, que deve convencer os outros personagens e, também, público. Repetimos: no concerto o solista é um personagem, dentro de uma dramaturgia. A música de Mozart, nos seus concertos nos leva, especialmente nos seus finali, em direção á uma temática de ópera, fazendo surgir verdadeiros personagens-atores sonoros.

Assim a dramaturgia de Mozart vai além das suas 22 obras teatrais, tenham ou não o título de ópera (a maioria não o tem), mas todas elas representáveis, como vai provar este ano o Festival de Salzburg que vai levar à cena todas as 22, um desafio para os diretores de teatro que as dirigirão.

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