CLEYDE YÁCONIS, UM ANO
Hermes Frederico
Há um ano, em abril de 2013, as artes cênicas brasileiras perdiam uma de suas mais importantes representantes: Cleyde Yáconis.
O país teve a possibilidade e o privilégio de conviver com a arte e o talento dessa magistral atriz por 63 anos. A CAL também usufruiu desse privilégio. Em 1996, enquanto atuava na peça “Péricles”, de Shakespeare, Cleyde aceitou o convite para ministrar um curso intensivo de interpretação durante 5 dias seguidos. Alunos da instituição e alguns profissionais não perderam a oportunidade de receber aquelas preciosíssimas orientações. Cleyde, tão intensa quanto o próprio curso proposto, expandiu o horário, antes das 19 às 23 para às 15 até meia noite. Incansável e entusiasmada, ela demonstrava uma vocação, que dizia não saber se possuía, admirável.
O curso aproximou Cleyde da CAL e, dali, surgiu a ideia de montar “Longa jornada de um dia noite adentro”, a qual ela afirmava, solenemente e intensamente, que desejava montar a peça de O’Neil há quase 50 anos. Produzimos através da nossa firma Hergus (Hermes Frederico e Gustavo Ariani), ao lado da Lúdico (Ana Veloso e Vera Novelo). E em 2002, no CCBB, a peça estreou e arrebatou a todos. Cleyde foi indicada, ganhou vários prêmios, e foi reverenciada definitivamente. Nas nossas idas ao CCBB, Cleyde passava todo o texto da peça com Sérgio Britto antes do início de cada sessão e, muito nervosa, “lastimava” dramaticamente: “por que fui escolher essa profissão?”. E ao término da sessão, exausta e feliz, cuidava carinhosamente e criteriosamente da peruca que usava em cena, por um longo tempo.
Na “Longa jornada...”, Cleyde estava com 79 anos e 52 anos de uma carreira começada ao puro acaso. Era auxiliar de guarda roupa no célebre TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), quando durante a temporada da peça “Anjo de pedra”, protagonizada por sua irmã Cacilda Becker, uma das atrizes do elenco, Nydia Lícia, teve uma crise de apendicite supurada, na sessão de domingo e precisavam de substituí-la para a sessão de quarta. Mas quem decoraria o texto? Cleyde, segundo ela, num impulso de total irresponsabilidade, perguntou se era para dizer o texto assim e se movimentar da forma tal. Ao perceberem que ela sabia todo o texto e quase todas as movimentações, decidiram que ela substituiria. No dia da apresentação, segundo Cleyde, todos gaguejaram, exceto ela. E assim, eclodiu um talento enrustido, e a atitude “irresponsável” possibilitou o surgimento de uma atriz que se tornou excepcional.
A ascensão foi rápida. Em seguida fez um pequeno papel em “Pega fogo”, que mostrou ser aquele o seu caminho, e cresceu em “Seis personagens à procura de um autor”, de Pirandello e “Ralé”, de Gorki. Não havia nenhuma dúvida de seu diferenciado talento. E em seguida , protagonizou “Assim é se lhe parece”, de Pirandello, na qual interpretou com quase 30 anos de idade , a frágil velhinha , Senhora Frola, e ganhou todos os prêmios. Cleyde atinge, então, o status dos principais atores do TBC, Cacilda Becker, Sérgio Cardoso, Tônia Carrero, Paulo Autran e Walmor Chagas. Protagoniza, “Leonor de Mendonça”, de Gonçalves Dias e divide o estrelato com a irmã, Cacilda Becker, em “Mary Stuart”, de Schiller. Momento de grande impacto artístico. Cleyde revelava que ambas queriam ser a melhor em cena e entravam com tudo para um duelo artístico, só que ambas torciam uma pela outra, não havia a tensão da competição. “Hoje eu fui melhor, hoje você ganhou”, diziam com muito amor, numa união indissolúvel.
Cleyde e Cacilda tinham um amor incondicional entre elas, a irmã Dirce e a mãe Allzira, chamada de Alzirão, pela forte personalidade. Elas diziam que eram um único banquinho com quatro pés. Banquinhos que foram quebrando até sobrar Cleyde.
Outra grande emoção de Cleyde foi contracenar com Ziembinski em “Mortos sem sepultura”, de Sartre. Ziembinski era o seu “papaizão”, como dizia, o diretor da maioria de suas peças até então no TBC. Ziembinski era um eterno vigilante, até na coxia, durante as sessões, ele a orientava e a corrigia. Nessa peça eles estavam juntos como atores e não era o papaizão mais ali. A carta de alforria fora dada.
Cleyde em seus 63 anos de carreira teve um dos melhores repertórios que uma atriz pode desejar. Além de Tennessee Williams, Gorki, Pirandello, Sartre, Schiller, Shakespeare e O’Neil, interpretou outros grandes clássicos como Anouilh (Eurydice), Arthur Miller (A morte de um caixeiro viajante), Garcia Lorca (Yerma), Tchekov (O jardim das cerejeiras), Ugo Betti (A rainha e os rebeldes), jean Giroudoux (A louca de Chaillot), duas tragédias gregas, Édipo Rei, de Sófocles e “Medeia”, de Eurípedes, e autores mais recentes como Harold Pinter (Os amantes), Marguerite Duras (Cinema Eden), Athol Fugard (Caminho para Meca)e William Luce (A filha de Lúcifer). Os autores nacionais também estiveram presentes em seus trabalhos, além de Gonçalves Dias. Foi a primeira Geni de “Toda nudez será castigada”, de Nelson Rodrigues, como fora também a primeira Caroba de “O santo e a porca”, de Ariano Suassuna e esteve nas primeiras montagens de “O pagador de promessas”, de Dias Gomes, “Os ossos do barão”, “A escada” e “Vereda da salvação”, de Jorge Andrade e ”Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”, de Vianinha e Ferreira Gullar. Participou de “A semente”, de Guarnieri, ”O fardão”, de Braulio Pedroso, ”A rainha do rádio”, de José Safioti Filho, “A cerimônia do adeus” e “O baile de máscaras”, de Mauro Rasi e produziu “A capital federal”, de Arthur Azevedo. Além de diversos trabalhos onde atuou nos mais diversos gêneros e estilos.Trabalhou com diretores como Ziembinski, Maurice Vaneau, Flaminio Bollini, Alberto D’aversa, Antunes Filho, Flávio Rangel, Antônio Abujamra, Gianni Ratto, Silney Siqueira, Jorge Takla, Miguel Falabella, Ulisses Cruz, Mauro Rasi, Naum Alves de Souza, Emílio Di Biasi, Yara de Novaes , Ruy Cortez e Marco Antônio Braz.
Graças à televisão, o Brasil inteiro a conheceu. Além dos teleteatros nos anos 1950 e 1960, Cleyde fez várias novelas e minisséries. Estreou nas novelas em 1966, em “O amor tem cara de mulher”, na Tupi, como uma das quatro protagonistas, ao lado de Eva Wilma, Aracy Balabanian e Vida Alves.
Comoveu na primeira versão diária de “Éramos seis”, interpretando a antológica Dona Lola, em 1967. Fez notáveis trabalhos na Excelsior, entre 1968 e 1970, como a viúva apaixonada por Carlos Zara em “Os diabólicos”, a terrível mãe de Paulo Goulart e sogra de Nathalia Timberg em “Vidas em conflito” e a quatrocentona , esposa de Rodolfo Mayer, em “Mais forte que o ódio”.
Passa 3 anos fora da TV e retorna à Tupi no papel da socialite Clarita, em “Mulheres de areia”, de Ivani Ribeiro, e ganha dimensão nacional. Ivani escreve para ela “Os inocentes”, baseada em “A visita da velha senhora”, e o enorme talento é admirado por todo o Brasil. Faz “Ovelha negra”, de Walther Negrão, “O julgamento, de Renata Pallotini e Carlos Queiroz Telles, versão para as as Novelas de “Os irmãos Karamazov”e ganha vários prêmios de melhor atriz por “Gaivotas”, de Jorge Andrade, onde interpretava uma mulher que vivia em motos e bares, negando o envelhecimento e a percepção da finitude. E com Jorge Andrade, seu parceiro de teatro, interpreta na Bandeirantes Guilhermina Taques Penteado, a dominadora quatrocentona de “Ninho da serpente”, uma das mais notáveis interpretações das telenovelas.
Silvio de Abreu, que trabalhara como ator ao seu lado e eterno admirador a traz para a Globo onde Cleyde interpreta a falida socilite Isabele de Bresson em “Rainha da sucata”, com delicioso e requintado humor. Mesmo requinte que traz para Diolinda, a elegante hipocondríaca de “Torre de Babel”, a Gorgo de “As filhas da mãe” e a Brígida de “Passione”, contracenando com Fernanda Montenegro, Leonardo Villar e Elias Gleizer. Tudo Silvio, que também supervisionou “Eterna Magia”, de Elizabeth Jhin e a novela “Vamp”, de Antônio Calmon, que também se encanta com o seu talento e a convida para “Olho no olho” e “Sex Appeal”.
O cinema também esteve com ela, desde “Nas sendas do crime”, em 1954, passando por “A madona de cedro”, onde contracenva com três grandes colegas, Sérgio Cardoso, Leonardo Villar e Ziembinski, “Parada 88”, “Dora Doralina”, Jogo duro” e “Bodas de papel”, em 2008.
Cleyde faz falta. Nesse primeiro ano sem ela, a sua importância continua reconhecida e mantem-se como referência de uma das maiores atrizes que esse país já possuiu em todos os tempos. Suas colegas a reverenciam. Fernanda Montenegro diz que sempre gostou de tudo que a Cleyde fez, Nathalia Timberg afirma que a interpretação de Cleyde em “Longa jornada...” é a melhor coisa que viu em teatro nos últimos anos, Aracy Balabanian é eterna admiradora e não esquece as suas orientações.
A CAL jamais esquecerá aqueles dias de convivência e sente-se muito honrada em tê-la na sua história.
E em algum lugar do espaço, o banquinho foi recomposto e o amor entre Cleyde, Cacilda, Dirce e Alzirão é literalmente eterno.