COLETIVO IMPROVISO

SUPERFÍCIE E ABISMO NO ENCONTRO COM O OUTRO

por Daniel Schenker

Formado por um grupo heterogêneo de artistas, Coletivo Improviso apresenta o resultado de sua investigação sobre a diferença.

O “primeiro outro” com que os integrantes do Coletivo Improviso se depararam foram eles mesmos. Afinal, a diferença está na base do Coletivo, que reúne atores, bailarinos, coreógrafos e músicos – portadores, portanto, de formações e experiências variadas.

Durante os ensaios, encontraram o outro nas pessoas que entrevistaram pelas ruas do Rio de Janeiro e nos artistas de companhias diversas que participaram, em ocasiões determinadas, do processo. E se preparam para receber o outro, simbolizado nos espectadores que se deparam com Otro no Espaço Cultural Sergio Porto, que segue em turnê por Bélgica, Alemanha, Áustria e Japão. Também estão previstas apresentações na Suíça, Holanda, França, Espanha e Itália. Esse novo trabalho surgiu de uma residência realizada no último Tempo Festival das Artes (conduzido por Bia Junqueira, Cesar Augusto e Marcia Dias) e desponta agora quase como um lançamento da próxima edição, marcada para começar no dia 26 de maio.

Perguntas altas nortearam a criação: “o que é ‘o outro’?”, “Como se vê?”, “Como me vê?”, “Posso ver o mundo pelos olhos dele?”.

- Não há como obrigar a experiência a responder estas perguntas. O que mais nos interessa é um estado de pergunta em relação ao outro e não a determinação em falar algo. Há uma perplexidade que atravessa o espetáculo – diz Enrique Diaz, que divide a direção com Cristina Moura.
Diante de campo de investigação tão amplo, os integrantes do Coletivo (Daniela Fortes, Denise Stutz, Felipe Rocha, Raquel Rocha, Renato Linhares e Thierry Tremouroux) estabeleceram recortes.

- A pesquisa começou bem aberta. Tudo vale porque qualquer coisa remete ao outro. Foi fundamental realizar escolhas. O espetáculo pode até parecer aleatório, mas evitamos que fosse tanto quanto a vida – destaca Diaz, acerca dessa empreitada do Coletivo, fundado em 2002.

Durante o processo foram feitos percursos pelo Rio de Janeiro.

- Trabalhamos os labirintos da cidade. Empreendemos percursos muito curtos e outros muito longos, sendo que os segundos não foram necessariamente mais ricos que os primeiros – assinala.

Em alguma medida, esses percursos suscitaram uma espécie de descolamento em cada integrante do Coletivo.

- Se eu olhar para a minha filha é pessoal demais. O projeto abrange, de qualquer modo, a nossa subjetividade. Se eu for para a Taquara é diferente – afirma.

Determinadas regras pautaram as travessias.

- Duas pessoas saíam juntas. Uma passava pela experiência; a outra anotava. Criamos regras. Por exemplo: elas deveriam andar cinco minutos, pegar um ônibus, saltar três pontos depois, falar com a primeira pessoa de vermelho que aparecesse e fazer perguntas, como “qual a última coisa que você fez?”, “você mora a quanto tempo daqui?”, “o que você faria se só tivesse uma hora de vida?”. O objetivo era quebrar o plano médio a partir do qual normalmente observamos as pessoas. Por isto, as perguntas não podiam ser tão tradicionais – descreve.

A escrita de Clarice Lispector (1920-1977) também conduziu o grupo na investigação de questões impalpáveis.

- A constatação do fracasso da linguagem é própria de Clarice. Ela não precisa deixar de falar da superfície para abordar o abismo. Não existe a presunção de uma profundidade que deveria ser mais importante. Ser superficial não é ruim. A superfície interessa. Remete ao cinema, uma manifestação na qual o espectador é afetado pela cor, pelo ritmo, pelos planos, não só pela história. Viver é olhar e perceber, não apenas pensar – sublinha.

Enrique Diaz e Cristina Moura dirigiram espetáculos com Mariana Lima fundados na obra de Clarice – no caso dele, o elogiado monólogo A paixão segundo GH, e no dela, o infanto-juvenil A mulher que matou os peixes...e outros bichos.

O Coletivo Improviso abriu os ensaios para o outro – outro representado, no caso, por mais de 20 artistas de outras companhias que participaram de intercâmbios durante a fase de construção da encenação. A partir da estreia, o outro passa a ser o público.

- Queremos jogar com a plateia, não para ela – ressalta Cristina Moura.

Não há barganha nessa relação.
- A plateia deve se sentir dentro, convidada, sem que nos valhamos dos procedimentos tradicionais de uma peça interativa – aposta Diaz, que dirigiu, anteriormente, Não olhe agora, do Coletivo.

O olhar lançado em direção ao outro não é atravessado por uma idealização.

- Curiosidade é um dos elementos que a diferença em relação ao outro provoca.  Há o medo e até mesmo a indiferença. Você pode não querer olhar para o outro. Pode não se interessar por achar que sabe o que o outro é. Mas existe o que ver – garante.

Enrique Diaz não é o único que sabe disto. Os componentes do Coletivo Improviso lidam com a heterogeneidade numa época em que as fronteiras entre as manifestações artísticas vêm sendo cada vez mais problematizadas.

Em que medida ainda cabe delimitar territórios específicos, características próprias de uma ou outra expressão?

- Ao invés de dizer que não é teatro, gosto de pensar qualquer manifestação como portadora de múltiplos elementos. O teatro é o lugar onde cabe tudo – opina Felipe Rocha, que atuou sob a direção de Enrique Diaz em montagens como Ensaio.Hamlet.

Diaz caminha na contramão de classificações.

- Gosto da palavra performance dentro da nossa limitação linguística. É um enquadramento menos maligno pela necessidade de algum. Já o termo teatro remete a uma identificação com o drama como construção dramatúrgica.

Denise Stutz não nega a existência de especificidades.

- Eu tenho histórico na área de dança, mas a partir dela passei por experiências profissionais diversificadas. Hoje, apesar de ser, sobretudo, uma bailarina, carrego todas as informações decorrentes dos trabalhos dos quais participei – observa.

O fato é que ao se debruçar sobre o outro, cada artista do Coletivo Improviso está, em última instância, falando sobre si.

- Você morre sozinho, mas, dependendo da sua fé, nunca esteve sozinho – aponta Enrique Diaz.

 




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