CRÍTICA: A CANÇÃO BRASILEIRA
Quando o teatro é um túnel do tempo.
Montagem de “A canção brasileira ” homenageia
a antiga maneira de se fazer um musical

Pedro Henrique Neves


Muito já se falou sobre o recente boom no mercado do teatro musical carioca e paulistano, responsável por vários êxitos de crítica e bilheteria na última década. Entre os gêneros, ganharam destaque o musical biográfico ("Dolores", "Somos Irmãs", "Cole Porter", "Metralha") cuja fórmula já se encontra desgastada e a adaptação de musicais estrangeiros ("O Fantasma da Ópera", "A Bela e a Fera", "Company").
Em um cenário como este, montar um musical como "A Canção Brasileira", além de nadar contra a corrente, significa correr alguns riscos, como as dificuldades de produção e a encenação de um gênero pouquíssimo apresentado por aqui: a opereta.

Quando estreou, em 1933, "A Canção Brasileira" já representava uma recuperação do gênero, que estava em declínio nos anos 1920. Escrita por Luis Iglesias e Miguel Santos, o espetáculo contava com cerca de 30 canções originais compostas por Henrique Vogeler, parceiro de Noel Rosa e Lamartine Babo. Nos papéis principais, estavam Gilda de Abreu e Vicente Celestino. O enredo traduzia bem a época e o pensamento que começava a surgir desde então, considerando a miscigenação como aspecto fundador da cultura brasileira. Na história, depois de nascer, a Canção Brasileira, filha da Modinha com o Lundu, é seqüestrada e criada em um morro carioca, onde conhece o samba, de quem fica noiva.
O simples ponto de partida serve para trazer ao palco personagens como o fado, o tango, o tamborim, a valsa, a cuíca, entre outros.

Na nova versão, em cartaz na Casa da Gávea, o diretor Paulo Betti procura sublinhar bem o aspecto histórico da opereta. Para isto, segue à risca o manual do bom e velho teatro musical brasileiro. Sem conceder a modernidades, ele mantém o roteiro original, valorizando sempre os momentos cantados. Afinal, se trata de um raro musical em que as músicas têm função dramática e as composições de Vogeler já seriam,
por si só, um motivo para remontar a opereta. A direção musical de Alexandre Elias contribui para o bom resultado final.

O visual da montagem, com cenários e figurinos a cargo de Ronald Teixeira, também segue a linha de "túnel do tempo", utilizando telões e elementos cenográficos que remetem - mesmo que não imitem - ao que seria um cenário da época de estréia do espetáculo. Os numerosos e extravagantes figurinos flertam, com bom gosto, com a proposta de revival. A idéia de caracterizar também os músicos reforça a unidade do conjunto cenográfico, sempre bem iluminado por Aurélio de Simoni.

Vale dizer que, depois de um primeiro ato mais protocolar, o espetáculo cresce na segunda parte, quando o ritmo se intensifica, a comédia sobressai e a coreografia de Suely Guerra e Soraya Bastos tem mais chances de mostrar serviço. O elenco de 14 atores e três músicos
um número "de época", impensável para a maioria de produções atuais
é muito equilibrado, faz bom uso da dança e do trabalho de corpo, valorizando os momentos cômicos.

Márcia do Valle, José Mauro Brant e Édio Nunes oferecem carismáticas interpretações, especialmente no divertido quadro do Magazin. Julia Fajardo compõe com humor a amalucada Senhorita Charleston e, junto com Rodrigo França e Édio Nunes, garante empatia com a platéia.

Thaís Gullin e Ana Baird saem-se melhor como (boas) cantoras, enquanto Wladimir Pinheiro tem a presença e a preparação vocal exigida pelo papel. Os músicos Flora Borges, Guilherme Miranda e Thiago Tomé se arriscam como atores, mostrando versatilidade. Responsável pelo papel-título, Juliana Betti poderia acrescentar mais vitalidade ao importante personagem.

Tão importante quanto o resgate histórico é o fato de "A Canção Brasileira" apresentar tema, estrutura dramática e estética bem diferentes das que embalam - e engessam muitas vezes - a maioria dos musicais montados na última década. Quem ganha é o público.

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